DANIEL FRANCOY
IMAGINO O PAÍS QUE ABRIGA O RIO DOCE
Imagino o país que abriga o Rio Doce
e o terror do transbordamento: um batismo
de lama e veneno, e depois a corrente
serpente fatal e espessa rumo ao mar
e estava em todos jornais o que acontecia
na cidade da barragem rompida
e o rumor surdo que ecoava
era a agonia de um país afogado.
Eis que os corpos mortos naufragados
na água densa, tornados detritos,
chegaram aos quintais de nossas casas
e a aurora era a verdade insuportável
de um pesadelo prologado
em que a bandeira nacional tremulava suja.
Depois, todos quiseram se limpar,
mas souberam que a imundície impregnada
vinha dos chuveiros e das torneiras
e era algo na fronteira do sangue e da lama
que ainda nos dava de beber.
I IMAGINE THE COUNTRY THAT HOUSES THE RIO DOCE
I imagine the country that houses the Rio Doce
and the terror of overflowing: a baptism
of mud and poison, and after the current
fatal and thick serpent towards the sea
and what happened was in all newspapers
in the city of the broken dam
and the deaf noise that echoed
was the agony of a drowned country.
Then the shipwrecked dead bodies
in the dense water, turned into garbage
came to the yards of our houses
and dawn was the unbearable truth
of a prolonged nightmare
where the dirty national flag waved.
After, everybody wanted to clean themselves,
but learned that the filth
came from the showers and taps
and was something between blood and mud
yet quenched our thirst.
FORAM-SE PACIFICAMENTE OS NOSSOS MORTOS
Todos os nossos mortos foram-se
pacificamente: os pais, os amantes,
os índios dizimados, os prisioneiros fuzilados,
os companheiros de medo e de ódio,
os atônitos que o câncer destrói
com método, aqueles que tanto
amávamos, embora raivosos.
Caíram em perfeita harmonia com o dia
como o fruto que se perdeu
por uma maldade dos deuses.
Ainda nas piores horas, jamais pensamos:
é chegado o massacre.
E tampouco, otimistas, julgamos:
somos os sobreviventes da matança.
A tarde avança sem fraturas e se corvos
voam em torno do sol
é o cortejo de uma carcaça anônima.
OUR DEAD ARE PEACEFULLY GONE
All our dead are gone
peacefully: parents, lovers,
the decimated indians, the gunned down prisioners,
the friends in hate and fear,
the ones in awe destroyed by cancer
with method, the ones who we
loved so much, although angry.
They fell in perfect harmony with the day
as the fruit that was lost
through mischief of the gods.
Yet in the worst hours, we never think:
the massacre has arrived.
And we, optimists, don’t even judge:
we are the survivors of the killing.
The afternoon comes without fractures and if crows
fly around the sun
it is the procession of an anonymous carcass.