verônica ramalho

TRECHOS DE “A MULHER DE MIL OLHOS”

A sonda Cassini deu suas últimas voltas ao redor de Saturno no que os cientistas chamaram de mergulho da morte. A peça composta por metais e cabos teve como seu último procedimento um movimento que a incendiou nos anéis do planeta que mais nos fascina, depois de, como disseram, namorá-lo por doze anos. A humanidade dos cientistas é tão grande que para além das palavras poéticas que utilizaram para descrever as atividades da sonda, ainda se referiram ao seu descarte como suicídio. Nenhum deles jamais ouviu sobre o mergulho da morte de tantos viciados em crack, esquizofrênicos sem posses, pessoas com fome e estrelas no fundo dos olhos. Imagina que poesia eles poderiam fazer ao se referirem ao suicídio dessas pessoas. Ah se os cientistas das sondas observassem os anéis das ruas do mundo.

A cidade me enfia agulhas do tamanho de espadas, acupuntura de gigantes que não resolve nada. A cidade, empilhamento de corpos, de esforços, jogo de tabuleiro sem dados nem regras. No desespero, costurar os olhos um a um, que não abram, não vejam, não vivam. A cidade, monstro aquático ressecado que nos equilibra sobre sua barriga enquanto se alimenta vagarosamente de nossa seiva. Quero solvente que amolecesse tudo o que é concreto, caminhos de borracha, rota improvável de elásticos infinitos, cama de gato. Deito e meu tórax é pele de tamborim. Sem me mover sinto os batuques, o tecido esticado treme. São os ecos dos passos dos titãs. Os prédios cansaram de esperar e caminham à procura de seu divertimento. Impetuosos e fanáticos vão em círculos ao horizonte.

 

EXCERPTS FROM “THE WOMAN OF A THOUSAND EYES

The Cassini probe turned around Saturn for the last time; the scientists called it its death dive. The device composed by metals and wire had as its last procedure a movement that burnt it down in the rings of a planet which bewilders us the most, after, as it was said, dating it for twelve years. The scientists’ humanity is so huge, far beyond the poetic words used to describe the probe’s activities, that they referred to its discarding as a suicide. None of them ever heard about the death dive of so many crack addicts, pauperized schizophrenics, hungry people with stars in the back of their eyes. Imagine what kind of poetry they could make if they referred to these people’s suicide. Oh, with the probe scientists could observe the rings above the streets of the world.

The city thrusts into me sword-sized needles, an acupuncture of giants which does not solve anything. The city, the piling of bodies, efforts, a board game without dice or rules. In despair, sewing eyes shut one by one, so they don’t open, don’t see, don’t live. The city, dried aquatic monster who juggles us on its belly as it slowly feeds on our sap. I want a solvent to mollify everything concrete, rubber paths, improbable route of infinite rubber bands, a string figure. I lay down and my ribcage is tambourine flesh. Without moving I feel the thumping, the stretched fabric trembles. They are echoes of the Titans’ step. The buildings are tired of waiting and lurk for amusement. The stubborn and fanatic wander in circles towards the horizon.

 

TRECHO DE “OS JARDINS DA TUA BOCA”

Um louco passou por mim. Um louco a arrastar os pés na água, a caminhar pela vala, a vala cheia da água que outros terrenos esvaziam. No sentido contrário, eu vou pela elevação, pelo terreno drenado, mas porque é ele o louco? Ele arrasta os pés, cria vagas, se molha até as canelas de água da vala, o resto da chuva molha do joelho pra cima. Chinelos-prancha. Ele vai como quem cruza um rio, como quem caminha pelo estreito que a maré alta cobriu. Ele vai como se a vala estreita e longa fosse seu único caminho, canal marcado. Ele passou. Eu molhado, pés encharcados, esquivo-me da água. Eu pingando preocupado em me abster da água. Eu, são, quero antes molhar o espaço do que deixar me molhar por este. Eu distante com todos os pensamentos que Elara pensava no mesmo momento, ou algumas horas atrás, dependendo de onde ela estivesse. Quem é o louco, afinal?

 

EXCERPTS FROM THE GARDENS OF YOUR MOUTH

A maniac walked past me. A maniac dragging his feet on water, walking along the ditch, the ditch filled with water emptied by other lots. In the opposite way, I go along the slope, the drained lot, but why is he the maniac? He drags his feet, forming waves, wets his shins with ditch water, the rest of the rain soaks him from the knees up. Board-slippers. He goes as one crosses a river, as one walks along a strait the high tide covered. He goes as if the narrow and long ditches were his only path, marked canal. He traverses. Soaked-me with drenched feet avoids the water. Dripping-me worried about abstaining from water. Sane-me would rather wet space than be wet by it. Distant-me with all the thoughts Elara thought at the same moment, or some hours ago, depending on where she was. Who is the maniac, after all?

—translated by rodrigo bravo
Artist and poet of many media, Veronica Ramalho has worked for ten years with scene design and art direction for cinema, television and theater. From 2013 to 2016, she kept the blog “versos para serem lidos” with immediate poetry, a writing exercise without editing. She wrote, directed and produced the poetry short movie “Saudade”. In 2018, she published “A mulher de mil olhos” with Editora Córrego. She also curates the installments of “Festival de Apartamento”, an event aiming towards integrating artists and ways to produce and consume art.